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Kimev maxel ejuy? 

Por que as pessoas criam línguas?

Cada língua artificial tem um motivo para ser construída e este motivo se relaciona com a psicologia e a cultura. O que um construtor de línguas quer dizer com a sua criação? 

Rodrigo Solano 

allamejlanguage@gmail.com 

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O que as pessoas dizem?  

Construir línguas pode parecer, algo um tanto estranho, ou até inútil, pelo menos à primeira vista. Podemos dizer que em partes sim, tanto estranho quanto inútil até certo ponto. Pode parecer estranho por sair do comum e inútil porque a maior parte das línguas construídas não exercem sua função mais útil conhecida - comunicar! A língua para comunicar precisa ser falada por uma comunidade. E este não é o caso da maioria das línguas construídas. 

 

Por outro lado, nada que se inventa é comum. Qualquer novidade é desconhecida, portanto estranha. Desde as hipóteses que se transformam em teorias científicas até as produções artísticas que nos causam emoções nos são estranhas até conhecermos melhor a respeito. Dedicar algum tempo para conhecer o fenômeno de criação de línguas, talvez não como línguas, mas como criações artísticas, pode nos apresentar um universo bastante diferente. Este universo pode nos conscientizar das ilusões a que estamos sujeitos através da linguagem.

 

Talvez muitas coisas que julgamos ter certeza sejam apenas frutos de uma interpretação semântica diferente da realidade existente fora da língua que falamos. Nosso mundo ao redor pode ter diferentes interpretações além daquela que damos através de nossa língua. Deste modo, a exposição ao exercício de conhecer línguas construídas e o que motivou sua construção pode ampliar a forma como percebemos o mundo. É explorar diferentes maneiras criadas para descrever e interpretar a realidade , um verdadeiro exercício filosófico, ou um pensar além.      

As línguas já criadas têm demonstrado diversos objetivos, entre eles posso mencionar alguns com base no vídeo Why People Make Their Own Languages (Por que as pessoas constroem suas próprias línguas?:

 

  • Melhorar a comunicação global: Línguas como o Volapük, o Esperanto e Interlingua estão entre as criações de línguas auxiliares globais. Têm como objetivo se tornarem línguas internacionais que possam ser faladas por pessoas de diferentes nacionalidades. Críticos mencionam que falharam e, entre os motivos, está o de fixarem seus vocabulário excessivamente nas línguas europeias, o que ofusca sua neutralidade. Outro motivo está o de uma competir com a outra e quase sempre haver pessoas querendo modificá-las e criar novas versões. 

 

  • Contribuir com pensamento filosófico: A ciência e mais especificamente e filosofia da linguagem apontam questões que implicam na inexatidão ou na distorção de percepção da realidade pelas línguas naturais. Foram feitas propostas de línguas filosóficas como o Loglan, que após propostas de modificações se tornou o Lojban.  Entre as críticas está a de que a estrutura da língua distancia-se muito das línguas naturais parecendo mais um código de computação. 

 

  • Para divertir: Sim! Construir gramática, palavras, estruturas, escritas e tudo o que compõe uma língua pode ser muito divertido, embora demande muito tempo. Se você já assistiu O Avatar ou a série The Game of Thrones deve ter ouvido as línguas Na'avi e Valyrian sendo faladas. São línguas artísticas e que dão às duas produções características lúdicas além de transmitirem uma infinidade de significados. Estas línguas dão maior autenticidade aos povos que as falam na ficção. Seria estranho chegarmos a outro planeta e encontrarmos pessoas falando inglês, português ou árabe. A produção cinematográfica poderia ficar sem sentido.              

 

Eu mesmo perguntei no grupo do Facebook Conlangs qual o motivo dos construtores de língua participantes terem criado suas línguas. Embora não stenha sido uma pesquisa científica, a resposta majoritária dá um indício: fun, "diversão".  E este motivo faz muito sentido psicanaliticamente! 

O que pode estar por trás do fenômeno?

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος... 

Pronúncia aproximada: /En ar-rê en ho Lógos/ 

A frase acima em grego koiné, "No princípio era o verbo...", cujas traduções podem variar levemente, consiste de um famoso trecho do Evangelho de João o qual faz parte da Bíblia, livro base da fé Cristã, uma entre as muitas fés pertencentes a diferentes culturas no mundo cada qual com valiosas contribuições para com a diversidade cultural da humanidade. Embora possa ser considerado metafórico, o pequeno trecho é um exemplo que parafraseia a nossa realidade em relação à existência: antes de nós nascermos, o verbo, ou seja, a língua que aprendemos, já existia. Um dos psicanalistas mais influentes depois de Freud, Jacques Lacan, também usou a palavra "verbo" em seu livro Escritos: 

"A experiência psicanalítica descobriu no homem o imperativo do verbo e a lei que o formou à sua imagem." (1995 [1966], p. 323),  

A teoria psicanalítica tem em seu cerne a linguagem e a língua. Desenvolve seu método levando em consideração a imersão do indivíduo no mundo sígnico após seu nascimento - ou seja na linguagem e esta traz consigo um conjunto de valores, costumes e um histórico transmitindo ao indivíduo o que chamamos de cultura. Por mais que tentemos buscar uma neutralidade em relação a como percebemos a realidade e o mundo, a cultura se impõe e o faz através da língua. Tudo o que acreditamos, como nos comportamos, nossas visões como e o que somos têm muito a ver com a língua que falamos.        

Neste caso, construir uma língua pode ser uma maneira de criar caminhos para uma cultura diferente daquela aprendida através daquela que falamos. É como se o universo cultural no qual o construtor está inserido não fosse satisfatório para o que ele deseja.

Além disto, construção de línguas pode estar relacionada com o que chamamos de "sublimação" em psicanálise. A grosso modo, é uma maneira de canalizar a energia de nossos impulsos para um lugar diferente do sexual ou do agressivo, por exemplo. É o que acontece quando estudamos algo que gostamos, praticamos um esporte ou produzimos algo de valor intelectual ou artístico. É uma forma de ter prazer, isto é, de se divertir!     

Também vale mencionar que há, na psicanálise, uma forte conexão entre a língua, a cultura, o pai (função paterna), e este último com Deus. Também sabemos que o conceito de Deus varia de cultura para cultura. Isto abre portas para uma análise do elo entre a construção de línguas e o significado de Deus nelas. Este aspecto está compreendido no tema de que tratei na minha monografia de especialização em Semiótica Psicanalítica - Clínica da Cultura.        

Criação de Línguas e a Cultura 

Se a língua e a cultura se relacionam, a criação de línguas levanta a hipótese da construção de culturas seja como consequência ou motivação. O autor de The Art Of Language Invention, “A Arte da Invenção de Línguas”, e criador das línguas da série The Game of Thrones, David Peterson menciona com base em Tolkien que a língua e a cultura são ítens inseparáveis. É praticamente unanimidade que realmente o são, seja na psicologia, na sociologia ou na antropologia. Um dos mais importantes linguistas do século XX, o russo Roman Osipovich Jakobson, com base na antropologia, põe em relevo a mútua implicação entre a língua e a cultura em seu livro Linguística e Comunicação de 1967.

Zamenhof quando construiu o Esperanto, trouxe paralelamente o Homaranismo uma filosofia baseada no pensador hebreu Hillel. As línguas das produções cinematográficas como O Avatar e The Game of Thrones também trazem consigo a cultura dos personagens que a falam: como pensam, como se comportam, no que acreditam - de maneira bastante fiel ao que acontece conosco na nossa realidade. E estes são alguns exemplos da vastidão de criações linguísticas existentes atualmente. 

A partir do que leio no grupo do Facebook Conlangs, grande parte das línguas criadas, mesmo que desconhecidas, trazem consigo um protótipo de cultura (ou cultura fictícia - e o termo fictício aqui vale uma reflexão), correspondendo, algumas vezes a um universo completamente diferente do que vivemos o que nos instiga a pensar fora da realidade como a conhecemos, e trazer de volta reflexões, quiçá, úteis e criativas para o nosso viver. Quando criei uma língua, não haveria de ser diferente: a cultura hipotética veio agregada confirmando o vínculo. Não sei se dizer se a língua que construí produziu um uma cultura hipotética ou talvez foi ela a consequência da diversidade cultural a qual eu me expunha e pelas quais eu me interessava. É quase como perguntar: "Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?"     

Uma Cultura Global

O alamês foi criado a partir de um contexto de ampliação do conhecimento cultural para além na minha língua materna. A intenção era abraçar o mundo dentro da língua. No caso de uma língua construída hibridamente, o tema da diversidade cultural no contexto global emerge como questionamento quase que automaticamente e coincide com uma importante questão de ordem antropológica: Qual o efeito da diversidade cultural? 

O antropólogo belga Claude Lévi-Strauss chegou a mencionar na publicação da UNESCO, Le Racisme Devant La Science, (O Racismo Diante da Ciência), que a diversidade de culturas apresenta muitos problemas, pois é questionável se é uma vantagem ou uma desvantagem para a humanidade. Mas ele reforçou sua importância e abriu portas para criações futuras: 

“Ele (Levi Strauss) representa uma visão extremamente subversiva com seu interesse em populações que foram desdenhadas. Ele prestou cuidadosa atenção, não de forma turística, mas profunda, aos seres humanos na Terra que pensam diferentemente de nós. É um respeito pelos outros, que é muito forte e muito comovente. Ele sabia que a diversidade cultural é necessária para a criatividade cultural, para o futuro.” (ERLANGER, 2008, tradução própria)

A criação de uma língua híbrida de essência global seria, neste caso, uma produção criativa que se vale da diversidade cultural. Ela pode ser interpretada como uma simulação de cultura das culturas. Neste sentido, o alamês possui um movimento contrário ao da imposição de valores. Assim como inspira-se em palavras e estruturas de várias línguas e culturas, seu imo é de absorção cultural, de maneira que cada cultura co-participe de uma ideia maior, o que demanda compreensão acerca de culturas diferentes da nossa. Criar o alamês fez-me refletir sobre os diversos aspectos das diferenças culturais, por exemplo, um questionamento que pode parecer perturbador para alguns: "se em alamês eu absorvo as culturas respeitando todas sem colocar uma em posição de superioridade em relação a outra como seria a definição de Deus?" Perguntas como estas não pretendem satisfazer somente a necessidade do alamês, mas os anseios de uma filosofia harmônica global, evocadas por Jon Lenon em Imagine,  por Dalai Lama em "A ética é mais importante que a religião" e, de alguma maneira, pelo Papa Francisco quando afirma que "Não existe um Deus católico". Outro bom exemplo é o pensador persa Jalaladim Rumi que entre seus pensamentos está: 

"Podemos saber quem somos ou não. Podemos ser muçulmanos, judeus ou cristãos, mas até que nossos corações se tornem o modelo para todos os corações, veremos apenas as diferenças." (VAIDYANATHAN, P. V. - The Magic of Jalalludin Rumi [2014]) 

Existem diversos outros exemplos que se alinham com movimentos ecléticos que mesclam produções artísticas mesclando e harmonizando diversas culturas.      

 

Tendo em vista os exemplos de movimentos em direção à harmonia cultural, pode-se perceber que o alamês não é “a língua global”, tampouco “o caminho cultural a ser seguido”. Criar mais uma "língua auxiliar ideal a ser falada" é cair na mesma armadilha em que caíram outras línguas auxiliares já construídas. Cada artista, pensador, filósofo ou construtor de língua tem um objetivo, que deve ter influência do ambiente cultural ao qual é exposto. A cultura hipotética vinculada à língua alamesa não é senão uma entre as várias respostas à segregação cultural. É mais uma num universo de produções que buscam a união. 

A construção do alamês, por este ângulo, procura vislumbrar na sua estruturação a possibilidade da existência de uma cultura global não impositiva ou imperialista, mas contempladora e harmonizadora em que todas as culturas poderiam ser compreendidas. Não estou, em hipótese alguma, discorrendo sobre a factibilidade desta cultura nos dias atuais. Mas não posso deixar de ousar a propor mais um objeto de estímulo a um pensamento harmônico de muitos pensadores que venceram os preconceitos e as fronteiras estabelecidas por sua passividade cultural.  

Se por um lado esta abordagem parece utópica, temos pistas de que pode não ser. Há alguns anos atrás jamais imaginaríamos ler um texto como este de qualquer lugar do mundo, num aparelho iluminado em nossas mãos e que ainda poderíamos contatar seu autor e conversar sobre o tema em tempo real. Além disto linguagens globais ou quase globais antes inexistentes hoje funcionam no trânsito, nos esportes, na linguagem da computação e em muitos ambientes internacionais. A ciência também possui uma linguagem global. A matemática possui a mesma lógica em qualquer cultura. Isto, há milênios atrás, era impensável. É possível que a ciência tenha conseguido unir a humanidade provando que somos uma única espécie, mas nossas tradições ainda nos ancoram num passado que nos estabelece fronteiras políticas, culturais, religiosas ... e linguísticas. Não deixa de ser razoável pensar que o domínio da linguagem de forma que integre a diversidade cultural humana seja questão de tempo. Quanto? Não sabemos.     

Com isto, a principal motivação para construção do alamês é para que sirva de base para um reflexão clara sobre quem somos no universo cultural e como estamos nos comportando para um despertar acerca da realidade global da humanidade. Junto com diversas outras construções, o alamês pretende instigar uma interpretação acerca do Eu, do Outro dos nossos valores e referências a exemplo do significado de Deus no contexto da diversidade cultural. Pretendo dar continuidade a este trabalho que não se trata apenas de criar uma língua, mas contribuir, de alguma maneira com um visão mais holística, compreensiva e clara acerca das diferenças culturais. O alamês é apenas algo lúdico, uma metáfora ou arte que simboliza um ideal cultural talvez factível, talvez não. É um projeto em aberto que, assim como outras criações, pode ou não contribuir para a melhoria da comunicação e relações interculturais. Seu futuro não depende senão dele mesmo e de quem quiser transformá-lo no que tiver que ser!   

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